sábado, 26 de dezembro de 2015





BOCA N. 25: O PAI NATAL É MÃO DE VACA?

Antes de mais deixem-me dizer que não tenho rigorosamente nada contra os presentes de Natal, pelo contrário: se o menino Jesus mesmo em tempo de penúria teve direito a oferta de ouro, incenso e mirra por que é que nós também não havemos de ter direito em tempos de maior abundância.
O problema é que, em regra, mesmo que não seja o caso, pensamos sempre que, naquilo que nos diz respeito, calha-nos sempre mais mirra do que ouro.
No início a culpa era do pai natal e bem vistas as coisas compreendia-se perfeitamente que, para quem tinha de processar tanta mercadoria, se pudesse enganar nalguma. O mais chato é que ano após ano o desgraçado parecia ser sempre o mesmo. Num ano eram umas bolachitas baunilha, no outro eram uns mini-chocolates regina (bem bons por sinal) e só alguns anos mais tarde um pequeno complemento em numerário: inicialmente vinte e cinco tostões e depois cinco mil réis. Há quase cinquenta anos era assim.
A fase do pai natal cedo foi ultrapassada. Podia lá ser. Como é que o trenó deslizava na calçada sem acordar toda a gente a meio da noite? Como é que o pai natal descia pela chaminé se era gordo? Como é que entrava nalgumas casas se nem chaminé tinham?Como é que tinha tempo de distribuir tudo numa noite se para distribuir a correspondência havia não sei quantos carteiros?
Portanto, a partir de certa altura, tinha aí uns dez anitos, comecei a pensar para mim mesmo: se quereis que eu pense que é o pai natal que nos traz as prendas eu faço-vos a vontade desde que, venham de onde vierem, mesmo fraquitas, continuem a vir.
A partir dessa altura, confesso, passei a ser um "idiota assumido" movido simplesmente pela ganância e assim atravessei toda a adolescência que, para este efeito, é a melhor fase da vida. Enquanto não trabalhamos - o que acontece cada vez mais tarde e nalguns casos nunca acontece - somos beneficiários do sistema sem termos a obrigação de contribuirmos para ele e isto é ouro sobre azul: temos o direito de exigir quantidade e qualidade sem ter o dever de retribuir em conformidade.
A partir do momento em que somos adultos, ou melhor, a partir do momento em que entramos na vida activa a coisa começa a piar diferente: para pior, diga-se. A partir deste momento temos de entrar no jogo e se queremos receber algum temos também de investir algum sob pena de estarmos calados. Aqui é que a porca troce o rabo e vem ao de cima a tal lenga-lenga do chouriço e de presunto: há indivíduos que só dão uma chouriça rançosa se tiverem a garantia de receber um presunto pata negra e isso desmobiliza qualquer um, por mais generoso e desinteressado que seja, de continuar a dar, dar mais e dar mais ainda.
Essa coisa de dizer que quando damos não temos intenção de receber nada em troca dá-me um bocado a volta às tripas. Será que há alguém que não se farte de tanta generosidade, sobretudo sabendo que quem recebe tem tanto ou mais condições de dar?
Não me parece. Quem dá gosta igualmente de receber o que não significa que seja toma-lá dá-cá que, em grande medida, é o que acontece no Natal.
O que verdadeiramente nos alegra é a surpresa de receber algo vindo de outrém sem motivo aparente. É isso que nos acalenta o ego e nos motiva a continuar a ser generosos. Por isso, meus amigos, se puderem dar no Natal, façam-no, mas se isso servir para justificar e compensar tudo o que não se fez durante o ano então mais vale estar quieto.
Hoje, quase cinquenta anos depois não tenho dúvidas. A culpa dos nossos desencantos não é, pois, do pai natal. A culpa é nossa porque nós somos o pai natal e, como diz o povo, e com razão, "o Natal é quando o homem quiser". Assim sendo, se o pai natal não é mais generoso com determinada pessoa há de ter certamente as suas razões.

Bocaslusas