sexta-feira, 3 de abril de 2015


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Boca n.º 14: Páscoa,  Missa e Vinho Branco


Esta semana fazemos um interregno nos assuntos da política (que, em abono da verdade, de tão bafientos não merecem um segundo da nossa e vossa atenção) e vamos fazer uma pequena incursão na envolvente espiritual própria do período pascal que atravessamos. Fazê-mo-lo a pedido de várias famílias, confessamos, mas a ideia não nos desagrada de todo. Aliás, encaramos a tarefa como um exercício ao nosso espírito crítico mais direccionado para a maledicência das questões terrenas do que propriamente para os assuntos do além sobre os quais, é verdade, tem de se medir bem o alcance das palavras para não ferir susceptibilidades. Mas vamos lá. Qual o significado da Páscoa nos dias que correm para o português comum do qual nos consideramos um espécimen?
A verdade é esta. À parte algumas pessoas que vivem a quadra verdadeiramente imbuídas no espírito da tradição cristã, honra lhe seja feita, a maioria não só não percebe rigorosamente nada sobre o que representa a Páscoa como age em conformidade com essa ignorância. Pergunte-se ao português comum o que vai fazer na Páscoa. As respostas não andarão longe disto: “se o patrão deixar meto quatro dias de férias e aproveito para ir até ao Algarve dar uns mergulhos” ou “vou dar uma escapadela até à terra e aproveito para trazer uns chouriços e uns litros de azeite”. Em suma, aproveita-se sempre a Páscoa para qualquer coisa: dar uns mergulhos ou trazer uns chouriços, menos para aquilo que devia servir, ou seja, para fazer uma introspecção sobre o que ela representa no universo cristão e em que medida isso pode melhorar a nossa existência.
Já agora. Banhos, chouriços! E a missa dominical não é preciso? Que crentes são estes que nem no domingo de Páscoa vão à missa ouvir o que o padre tem para lhes transmitir? Nos outros domingos ainda vá que não vá. Mas a missa do dia de Natal para comemorar o nascimento de Jesus e a missa do dia de Páscoa para comemorar a sua ressurreição é mínimo que se exige a um indivíduo que se diz crente não praticante como geralmente se auto-denominam para aí uns noventa e muitos por cento dos portugueses, sem andar longe da realidade.
Como vêm, em regra, os portugueses não sabem nada sobre a Páscoa e o simbolismo que lhe está associado, mas mais: não sabem, não querem saber e nós não temos vergonha em confessar que durante muitos anos fizemos precisamente o mesmo, senão pior, e até um passado recente também não andámos muito longe do que acabámos de apontar aos outros.
Se a maior parte não punha e não põe os pés na igreja nem por ocasião das grandes festas, pelo menos não fazia a triste figura que nós fizemos durante muitos anos. Embora já casados e com filhos não temos nenhum constrangimento em admitir que continuámos a ir à missa principalmente para não ouvirmos a mãe embeiçada ferir-nos os tímpanos com algumas curtas e grossas: “és um herege”, “dá impressão que não foste à catequese”, “estás a dar um rico exemplo aos teus filhos” ou “o que é que tens contra os padres?”. É verdade que este não foi o único motivo que nos impeliu a ir à missa ao domingo durante anos. Aliás, se formos honestos temos de dizer que os apelos maternais não fizeram sequer mossa nenhuma. Nós íamos à missa porque nos fazia bem ao ego embora pelas piores razões.
A coisa explica-se em poucas palavras. Na nossa aldeia cavada entre as serranias da Estrela e da Gardunha há anos que acontecia um estranho fenómeno de falta de pontualidade do mulherio à missa dominical. O pároco, é verdade, durante anos também não ligou lá muito ao andar dos ponteiros, mas não deixa de ser menos verdade que nos dias em que primou pelo cumprimento, as ditas retardatárias mantiveram a sua. Fazia parte do ritual, agora menos: “em nome do pai, do filho e do espírito santo” e lá iam elas entrando a conta gotas e em bicos de pés como se o atraso não fosse propositado. Eram cinco ou dez minutos deliciosos para o público masculino estrategicamente posicionado à entrada do templo que, em silêncio algumas vezes, outras vezes nem por isso, tinha a oportunidade de apreciar o que de melhor a terra produzia. Na entrada da igreja ficavam os homens em pé, lá mais para a frente ficavam as senhoras sentadas. De nada adiantava o Padre apelar aos homens para que se chegassem mais à frente para a «casa» ficar mais composta.
A missa do domingo de Páscoa tinha um motivo de interesse adicional na medida que permitia dar uma vista de olhos, assim de relance, pelas meninas da cidade que só iam à aldeia de quando em quando. Era assim como uma lufada de ar fresco para a vista cansada de ver mais do mesmo domingo após domingo.
Quem não via o que tinha a ver no inicio da missa tinha oportunidade de o ver no final porque pelo meio a maior parte dos adultos masculinos aproveitava para sair e ir malhar um branquinho ou dois na tasca mais próxima porque se o padre bebia a meio da celebração o pessoal também tinha direito. Por isso, ainda o padre não cantava há um quarto de hora e já era uma romaria estrada abaixo. Que Deus o tenha junto a si. Se não era homem de hábitos quanto à hora de começo do culto quanto à sua duração era sagrado: uma hora e um quarto nos domingos comuns e uma hora e meia certinha nos dias de festa. Esta rotina permitia aos machos ir saindo pé ante pé logo após o início da missa e regressar ainda antes da comunhão sem que as respectivas esposas dessem pela sua falta uma vez que se sentavam mais à frente e de costas para os ditos. Compreende-se que, bem lubrificados, curiosamente, os homens cantavam com muito mais pujança no fim da missa do que propriamente no inicio.
Acreditem ou não, talvez devido ao quase meio século de existência, no último domingo de ramos demos connosco sentados num dos bancos da igreja. Num banco traseiro é um facto, mas sentados e desde o minuto inicial o que é mais curioso ainda. Por instantes e inexplicavelmente demos com a nossa pessoa a inspeccionar a composição da assembleia: imediatamente à nossa frente estavam outros tantos que, como nós, meia-idade, pareciam ali ter caído mais por impulso natural de quem não quer estar todo o tempo em pé do que por natural desejo de bem ouvir o que estava a ser dito. A parte dianteira era quase toda ela ocupada por senhoras vestidas de preto, viúvas na maior parte dos casos, como se todas elas tivessem problemas de audição que as obrigasse a ocupar aquela posição. Na entrada da igreja continuavam uns quantos, na casa dos vinte ou trinta anos, tal como nós fazíamos há duas décadas atrás.
Naquele momento acabamos por nos concentrar no motivo que ali nos levara e começamos a pensar se aquele aglomerado de viúvas posicionado junto ao altar no essencial não resumia a génese do período da quaresma que então se celebrava. Não estava ali a mais simples e fidedigna representação do que é a quaresma e a Páscoa? O padre podia estar calado. Aquele postal dizia tudo. E fizemos questão de passar a ter isso em conta. 
A idade, tal qual o posicionamento das pessoas na igreja, tem a virtude de nos fazer reflectir sobre as coisas e de nos aproximar de Deus. Não significa que passemos a acreditar em tudo mas, no mínimo, faz-nos questionar com mais frequência. Naquele dia fixámos para nós próprios, oxalá não nos esquecemos doravante, que os quarenta dias da quaresma serão os quarenta anos que, no mínimo, se nos deixarem, tencionamos viver após o quase meio século que já contamos. Se assim for não temeremos a sexta-feira santa da nossa vida venha ela quando vier.

Bocaslusas

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