Boca n.º 14: Páscoa, Missa e Vinho Branco
Esta semana fazemos um interregno nos
assuntos da política (que, em abono da verdade, de tão bafientos não merecem um
segundo da nossa e vossa atenção) e vamos fazer uma pequena incursão na envolvente
espiritual própria do período pascal que atravessamos. Fazê-mo-lo a pedido de
várias famílias, confessamos, mas a ideia não nos desagrada de todo. Aliás,
encaramos a tarefa como um exercício ao nosso espírito crítico mais
direccionado para a maledicência das questões terrenas do que propriamente para
os assuntos do além sobre os quais, é verdade, tem de se medir bem o alcance
das palavras para não ferir susceptibilidades. Mas vamos lá. Qual o significado
da Páscoa nos dias que correm para o português comum do qual nos
consideramos um espécimen?
A verdade é esta. À parte algumas
pessoas que vivem a quadra verdadeiramente imbuídas no espírito da tradição
cristã, honra lhe seja feita, a maioria não só não percebe rigorosamente nada
sobre o que representa a Páscoa como age em conformidade com essa ignorância.
Pergunte-se ao português comum o que vai fazer na Páscoa. As respostas não
andarão longe disto: “se o patrão deixar meto quatro dias de férias e aproveito
para ir até ao Algarve dar uns mergulhos” ou “vou dar uma escapadela até à terra e
aproveito para trazer uns chouriços e uns litros de azeite”. Em suma,
aproveita-se sempre a Páscoa para qualquer coisa: dar uns mergulhos ou trazer uns
chouriços, menos para aquilo que devia servir, ou seja, para fazer uma introspecção
sobre o que ela representa no universo cristão e em que medida isso pode
melhorar a nossa existência.
Já agora. Banhos, chouriços! E a missa
dominical não é preciso? Que crentes são estes que nem no domingo de Páscoa vão
à missa ouvir o que o padre tem para lhes transmitir? Nos outros domingos ainda
vá que não vá. Mas a missa do dia de Natal para comemorar o nascimento de Jesus
e a missa do dia de Páscoa para comemorar a sua ressurreição é mínimo
que se exige a um indivíduo que se diz crente não praticante como geralmente se
auto-denominam para aí uns noventa e muitos por cento dos portugueses, sem
andar longe da realidade.
Como vêm, em regra, os portugueses não
sabem nada sobre a Páscoa e o simbolismo que lhe está associado, mas mais: não
sabem, não querem saber e nós não temos vergonha em confessar que durante
muitos anos fizemos precisamente o mesmo, senão pior, e até um passado recente também não
andámos muito longe do que acabámos de apontar aos outros.
Se a maior parte não punha e não põe os
pés na igreja nem por ocasião das grandes festas, pelo menos não fazia a triste
figura que nós fizemos durante muitos anos. Embora já casados e com filhos não
temos nenhum constrangimento em admitir que continuámos a ir à missa
principalmente para não ouvirmos a mãe embeiçada ferir-nos os tímpanos com
algumas curtas e grossas: “és um herege”, “dá impressão que não foste à
catequese”, “estás a dar um rico exemplo aos teus filhos” ou “o que é que tens
contra os padres?”. É verdade que este não foi o único motivo que nos impeliu a
ir à missa ao domingo durante anos. Aliás, se formos honestos temos de dizer
que os apelos maternais não fizeram sequer mossa nenhuma. Nós íamos à missa
porque nos fazia bem ao ego embora pelas piores razões.
A coisa explica-se em poucas palavras. Na
nossa aldeia cavada entre as serranias da Estrela e da Gardunha há anos que
acontecia um estranho fenómeno de falta de pontualidade do mulherio à missa
dominical. O pároco, é verdade, durante anos também não ligou lá muito ao andar
dos ponteiros, mas não deixa de ser menos verdade que nos dias em que primou pelo
cumprimento, as ditas retardatárias mantiveram a sua. Fazia parte do ritual,
agora menos: “em nome do pai, do filho e do espírito santo” e lá iam elas
entrando a conta gotas e em bicos de pés como se o atraso não fosse
propositado. Eram cinco ou dez minutos deliciosos para o público masculino estrategicamente
posicionado à entrada do templo que, em silêncio algumas vezes, outras vezes
nem por isso, tinha a oportunidade de apreciar o que de melhor a terra produzia.
Na entrada da igreja ficavam os homens em pé, lá mais para a frente ficavam as
senhoras sentadas. De nada adiantava o Padre apelar aos homens para que se
chegassem mais à frente para a «casa» ficar mais composta.
A missa do domingo de Páscoa tinha um
motivo de interesse adicional na medida que permitia dar uma vista de olhos,
assim de relance, pelas meninas da cidade que só iam à aldeia de quando em
quando. Era assim como uma lufada de ar fresco para a vista cansada de ver mais
do mesmo domingo após domingo.
Quem não via o que tinha a ver no inicio
da missa tinha oportunidade de o ver no final porque pelo meio a maior parte
dos adultos masculinos aproveitava para sair e ir malhar um branquinho ou dois
na tasca mais próxima porque se o padre bebia a meio da celebração o pessoal também
tinha direito. Por isso, ainda o padre não cantava há um quarto de hora e já
era uma romaria estrada abaixo. Que Deus o tenha junto a si. Se não era homem
de hábitos quanto à hora de começo do culto quanto à sua duração era sagrado:
uma hora e um quarto nos domingos comuns e uma hora e meia certinha nos dias de
festa. Esta rotina permitia aos machos ir saindo pé ante pé logo após o início
da missa e regressar ainda antes da comunhão sem que as respectivas esposas
dessem pela sua falta uma vez que se sentavam mais à frente e de costas para os
ditos. Compreende-se que, bem lubrificados, curiosamente, os homens cantavam com muito
mais pujança no fim da missa do que propriamente no inicio.
Acreditem ou não, talvez devido ao quase
meio século de existência, no último domingo de ramos demos connosco sentados
num dos bancos da igreja. Num banco traseiro é um facto, mas sentados e desde o
minuto inicial o que é mais curioso ainda. Por instantes e inexplicavelmente demos
com a nossa pessoa a inspeccionar a composição da assembleia: imediatamente à nossa
frente estavam outros tantos que, como nós, meia-idade, pareciam ali ter caído mais
por impulso natural de quem não quer estar todo o tempo em pé do que por
natural desejo de bem ouvir o que estava a ser dito. A parte dianteira era
quase toda ela ocupada por senhoras vestidas de preto, viúvas na maior parte
dos casos, como se todas elas tivessem problemas de audição que as obrigasse a
ocupar aquela posição. Na entrada da igreja continuavam uns quantos, na casa
dos vinte ou trinta anos, tal como nós fazíamos há duas décadas atrás.
Naquele momento acabamos por nos concentrar no motivo que ali nos levara e começamos a pensar se aquele
aglomerado de viúvas posicionado junto ao altar no essencial não resumia a
génese do período da quaresma que então se celebrava. Não estava ali a mais
simples e fidedigna representação do que é a quaresma e a Páscoa? O padre podia
estar calado. Aquele postal dizia tudo. E fizemos questão de passar a ter isso
em conta.
A idade, tal qual o posicionamento das pessoas na igreja, tem a
virtude de nos fazer reflectir sobre as coisas e de nos aproximar de Deus. Não
significa que passemos a acreditar em tudo mas, no mínimo, faz-nos questionar
com mais frequência. Naquele dia fixámos para nós próprios, oxalá não nos
esquecemos doravante, que os quarenta dias da quaresma serão os quarenta anos
que, no mínimo, se nos deixarem, tencionamos viver após o quase meio século que
já contamos. Se assim for não temeremos a sexta-feira santa da nossa vida venha
ela quando vier.
Bocaslusas
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