Boca 21: a pulseirinha da moda
O tema do momento é
indiscutivelmente a suposta alteração da medida de coação imposta ao ex-PM Eng.º
José Sócrates de prisão preventiva para prisão domiciliária com aplicação de
pulseira electrónica. Houve muito burburinho mas não chegou a saber-se
claramente se, afinal, a alteração foi mesmo proposta ao ex-PM e este recusou
ou se, ao invés, perante a manifestação pública da intenção de não aceitar a
medida esta não lhe foi sequer apresentada, decidindo o juiz pela manutenção da
prisão preventiva. Não nos interessa em particular o caso do ex-PM, como
sempre, mas enquanto representativo do elevadíssimo número de casos de
prisão preventiva em Portugal, o caso serve de mote à discussão, por outras
palavras apresta-se a umas quantas bocas.
Quando alguém é preso
preventivamente a primeira coisa que ocorre dizer ao cidadão comum,
especialmente quando está em causa um político é o seguinte: “já vai tarde” ou
“ainda cá ficam muitos”. Na mente do trabalhador que se levanta ao cantar do
galo para ganhar meia dúzia de trocos no final do mês deviam ser todos presos
desde o presidente aos ministros, passando pelos secretários de estado, sem
esquecer os directores-gerais. Todos, do primeiro ao último, deviam estar atrás
das grades.
O povo pensa e a justiça
responde. Bem ou mal os juízes têm vindo a fazer aquilo que o povo exige ao
mandar os delinquentes primários, secundários e terciários aos magotes para
trás das grades no estrito cumprimento da lei. Um cidadão pode estar preso
preventivamente durante seis meses, um ano ou dois anos simplesmente porque a
lei permite e ponto final. Portanto, se não quiserem que um pobre desgraçado esteja
na choça tanto tempo sem saber às quantas anda basta fazerem muita força para
que a lei seja alterada. E razões não faltam.
Em primeiro lugar convém
ressalvar que não há nenhum ordenamento jurídico que este escriba conheça que
não tenha prisão preventiva. Já imaginaram o que seria viver num país em que a
lei obrigasse o suspeito a ser julgado imediatamente após o cometimento do
ilícito. Seria um país de justiça em cima do joelho com resultados facilmente
imagináveis. E se o julgamento não fosse realizado de imediato mas o suspeito
não pudesse ficar detido preventivamente como seria? A resposta é fácil de
adivinhar. Se fosse culpado e a pena correspondente fosse daquelas de fazer
moça a primeira coisa que o suspeito fazia era pôr-se ao fresco de maneira a
que a justiça tão depressa não lhe pusesse os olhos em cima. Se ao crime
correspondesse uma pena merdosa, ainda assim o suspeito não perderia a
oportunidade de baralhar as contas à investigação, destruindo provas, coagindo
testemunhas, etc. E quando o crime estivesse entranhado no sangue das pessoas o
que é que acontecia? Acontecia que o suspeito ainda não tinha acabado de
cometer um crime e já estava a cometer outro e mais outro, ou seja, ainda não
tinha sido julgado do primeiro crime e já tinha cometido mais umas dúzias deles.
E quando o povo se fartasse e fizesse justiça pelas próprias mãos, linchando o
suspeito na praça pública? Concluiu-se, portanto, que até para defesa do
próprio suspeito é bom que exista a prisão preventiva.
A questão que se põe é outra.
Como é possível prender-se alguém preventivamente e depois não conseguir
produzir uma acusação no espaço de seis, sete, oito meses. Então os
pressupostos que servem para manter alguém preso preventivamente não são
suficientemente fortes e consistentes para obter uma condenação dessa pessoa em
julgamento? Reside aqui uma contradição incompreensível: pode dizer-se que os
pressupostos da prisão preventiva estão essencialmente direccionados para a boa
prossecução do inquérito, mas não pode olvidar-se que todo o tempo que é
passado em prisão preventiva é descontado no tempo de prisão que efectivamente venha
a ser aplicada ao arguido, o que significa que esta prisão dói tanto como a
outra. É precisamente a mesma coisa: os piolhos e os percevejos que existem na
cela do preso preventivo não são diferentes do que existem na cela do preso
condenado. Portanto, quando se prende alguém preventivamente, a investigação já
tem de estar suficientemente consolidada e avançada a ponto de permitir o
julgamento num curto espaço de tempo. É necessário fazer perícias de última
hora – façam-se; é necessário esperar por documentação relevante – espere-se; é
necessário preparar toda a logística do julgamento – prepare-se. Mas não se
mantenha ninguém atrás das grades porque a polícia e o MP não são competentes o
suficiente para investigar os suspeitos no seu habitat natural.
Dá a impressão que a lei não
permite escutas telefónicas, que a lei não permite fazer localização celular,
que a lei não permite fazer apreensões de correspondência, que a lei não
permite fazer filmagens, que a lei não permite tirar fotos, que a lei não
permite fazer vigilâncias, que a lei não permite fazer seguimentos, que a lei
não permite fazer buscas, que a lei não permite fazer revistas, que a lei não
permite fazer exames, que a lei não permite fazer perícias, que a lei não
permite interrogar testemunhas, que a lei não permite fazer acareações. A lei
permitiu e permite tudo isto e mais qualquer coisa. Inclusive a lei, entenda-se
outras leis, permitiram construir melhores instalações para as polícias (o
corpo superior de policia criminal não pode queixar-se dos milhões que foram
gastos na sua luxuosa sede), permitiram comprar mais e melhores viaturas,
permitiram adquirir material e equipamento mais moderno e permitiram, dentro do
possível, remunerar melhor o pessoal.
Então o que é que falta para que
a investigação criminal funcione e não necessite de prender para investigar?
Falta uma coisa simples. Falta cortar o mal pela raiz, encolhendo o prazo de
duração da prisão preventiva para um período aceitável. Um mês é pouco, dois
meses talvez não chegue, mas em três meses faz-se muita coisa se houver
profissionalismo. E, em bom rigor, salvo casos pontuais, que diferença faz à
investigação o facto de o arguido estar em prisão preventiva ou com obrigação
de permanência na habitação (é assim que a vulgar prisão domiciliária se
denomina)? Não faz diferença nenhuma a não ser que se tenha especial prazer em
ver alguém preso a aguardar julgamento. Tenho para mim que, salvo casos
contados, a maior parte dos presos preventivos podiam estar perfeitamente na
sua residência sem que daí adviesse mal nenhum ao mundo.
Que perturbação da investigação o
arguido pode fazer se está confinado a casa? As comunicações podem estar sob
escuta, os contactos com certas pessoas podem ser proibidos e quanto ao resto
por favor: se um homem confinado à sua habitação põe a investigação em perigo
das duas uma, ou o homem é um mestre do crime ou a polícia e MP são incompetentes.
Quanto ao perigo de fuga dá que
rir. Então um indivíduo corta a pulseira electrónica e vai para onde? Na Europa
mal se descuida está recambiado através de mandado de detenção europeu. Para
fora da Europa que eu saiba tem de ir de avião, a não ser que seja bom nadador.
Mas para ir de avião tem de passar pelos aeroportos. Ora, não passa pela cabeça
de ninguém que um arguido em obrigação de permanência na habitação não conste
no sistema informático dos aeroportos como estando proibido de sair do país.
E quanto ao alarme social nem se
fala. Se um indivíduo está na cadeia a sociedade mantém-se calma e serena. Se o
mesmo indivíduo estiver em casa sem possibilidades de sair para ir ao barbeiro,
à padaria ou à tasca a sociedade mantêm-se tão calma e serena como estava
dantes.
A diferença, esta é que é a
grande diferença, é que um desgraçado que esteja atrás das grades
preventivamente sem necessidade imperiosa de lá estar, está a ser vilipendiado
num direito que devia ser preservado até ao último momento: o direito de se
defender. Quer se queira quer não, alguém que está preso sem que isso seja de
todo necessário, está pura e simplesmente a ser tolhido na sua capacidade de
defesa. O que pode fazer um individuo, ainda que seja culpado, no interior de
uma cadeia, sem acesso a meios de comunicação, com visitas controladas, etc.,
para contrariar a máquina do Estado empenhada em juntar as provas para obter a
sua condenação. Aliás, sob o ponto de vista dos princípios a máquina do Estado
corporizada pelo MP assistido dos órgãos de polícias Criminal não devia tão e
somente preocupar-se em obter a verdade. Devia
empenhar-se na obtenção da verdade material que implica muitas vezes trazer ao
processo provas que contrariam a tese da própria acusação, assim elas se deparem no percurso da investigação.
Infelizmente estamos num mundo
imperfeito em que os princípios valem o que valem, ou seja, valem nada. A
partir do momento em que o investigador se convence da culpabilidade de alguém,
como é óbvio, direcciona a investigação no sentido de comprovar a sua tese,
excluindo tudo o que possa abonar em favor do arguido e não tenhamos dúvidas
que durante a investigação nem tudo o que é apurado é desfavorável ao arguido. Mas
para isso existe o arguido, atrás das grades, como é evidente, e o seu advogado, se tiver dinheiro para lhe pagar. Esta é a verdade material que temos.
Bocaslusas
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