sexta-feira, 6 de março de 2015


Boca n.º 10: Passos Coelho, Segurança Social e Queijo da Serra


No seguimento da polémica que envolve o primeiro ministro a propósito da falta de pagamento dos descontos obrigatórios para a segurança social no período em que foi trabalhador independente, alegadamente entre 1999/2004, durante a semana foi crescendo uma enorme vontade de lhe fazer algumas perguntas e, não negamos, dar-lhe uma monumental reprimenda.  
Então não sabe que um trabalhador independente tem de descontar para a segurança social? Não tem enfermeiros na família? Em que planeta é que vive? Perante tamanha ignorância como quer que acreditem em si? Se fosse regularmente à igreja e confiasse completamente no sacerdote qual seria a sua reacção se uma bela noite o encontrasse enroscado numa linda Ukra na casa da luz vermelha? Adiantava alguma coisa ouvir como justificação: "eu não sabia que era pecado"? 
Como é óbvio não adiantava nada, não adiantava rigorosamente nada porque qualquer diácono sabe perfeitamente que: "se sabe bem é pecado, se sabe muito bem é pecado mortal". Portanto, um político experimentado que queira converter o seu rebanho, como é o seu caso, mas que não conheça estas regras, não vai longe. Se não souber que receber e meter limpinho ao bolso é doce mas de tão doce pode provocar dor de barriga então só tem mesmo de ficar com mais dores no baixo ventre do que uma mulher em trabalho de parto.
Estou atónito. O senhor sabe fazer contas do arco-da-velha: quanto mais diz que dá mais, as pessoas sentem que lhes tira, mas não pesca nada sobre descontos obrigatórios. Não sabia que qualquer trabalhador preto ou branco, gordo ou magro, baixo ou alto, político ou não, tem de fazer descontos para ter direito a uma tigela de arroz nos dias de disenteria? Só pode ser. O senhor tinha os intestinos tão afinados que nem equacionava a hipótese de um dia a máquina lhe poder falhar. Mas é estranho porque qualquer um pensa nisso, inclusive os profissionais liberais que incham, e não é pouco, para quando lhes der a pasmaceira não andarem para aí aos caídos.
Já sei que não podemos confundir profissionais liberais com profissionais ultraliberais: uma coisa é uma coisa e a outra coisa é outra coisa. Um profissional ultraliberal confia cegamente no salve-se quem puder à boa maneira de Adam Smith. Quais descontos? Qual solidariedade? O mercado é que dita quem tem sucesso e quem tem direito a assistência e reforma condigna, o resto são balelas. O segredo está, pois, em ganhar o máximo enquanto é tempo e depois viver à conta dos rendimentos. Quem tem-tem e quem não tem-não tem. Cada um deita-se na cama que faz e é por isso que uns repousam o cabedal num colchão de molas e os outros esticam o esqueleto numa enxerga de palha.
E os que não têm sequer enxerga de palha? A vida dá muitas voltas. Não sabia, nunca lhe ocorreu, nunca lhe passou levemente pela mioleira que num sistema solidário como o nosso os descontos de quem trabalha é que garantem as pensões de quem já deu o que tinha a dar? Venha-nos dizer que não há hipótese de aumentar as prestações sociais. Venha-nos dizer que é preciso reduzir o seu valor. Venha-nos com outras tretas do género. Sabe o que vai acontecer? O povo vai dizer-lhe aquilo que precisa de ouvir: "enrole as notas relativas aos seus descontos retardados e meta-as no ..."
E com razão. Quem não é amigo não merece amigos. Com esse feitio quando for velhinho nenhum trabalhador há de querer descontar um tuste para financiar quem lhe ponha uma arrastadeira debaixo do traseiro porque quando foi a sua vez de descontar esquivou-se até à ultima. Quando os intestinos deixarem de funcionar certinho, o seu colchão de molas há de ficar com muito pior aspecto do que as enxergas onde actualmente dorme o zé povinho. Cá se fazem cá se pagam.
Ai não sabia que era preciso descontar? Então eu, jurista nos tempos livres e sem quaisquer ambições políticas, abandonei o liceu à mais de trinta anos e ainda consigo resolver uma equação de segundo grau. E vossa senhoria, economista e político profissional, não aprendeu rigorosamente nada sobre direito do trabalho e da segurança social em outros tantos anos. Está tão cru que até mete dó e por isso vou dar-lhe umas achegas sobre o assunto.
Andava Viriato a ser perseguido pelas terras lusitanas e já na Roma antiga os artífices se agrupavam em organizações denominadas sodalitium que tinham por finalidade garantir alguma protecção na doença e dignidade nos funerais. Está a ver que já naquela altura os intestinos tinham uns percalços valentes e levavam as pessoas a precaver-se. Pois era. E sabe V. Ex.ª o que era necessário para os sócios beneficiarem dessas regalias? Era necessário pagar uns quantos sestércios. 
Muitos séculos depois, mas bem antes de a cabeça de Maria Antonieta ter rolado para dentro do cesto, também os curtidores de peles para vestuário de Paris sentiram a necessidade de se organizar numa verdadeira associação de socorros mútuos que lhes assegurava uma pensão de três soldos por semana durante a doença. Sabe V. Ex.ª o que era necessário para os sócios beneficiarem dessas regalias? Já começa a desconfiar! Pois claro, tinham de pagar uma entrada inicial de dez soldos, uma dádiva de dez dinheiros ao clero e uma quotização semanal de um dinheiro. Está a ver, já naquela altura ninguém dava nada a ninguém.
No tempo dos nossos tetravós, à falta de sistemas de segurança social públicos, eram as associações de socorros mútuos que asseguravam a protecção, inicialmente na incapacidade e depois também na velhice. Sabe V. Ex.ª o que era necessário para os sócios beneficiarem dessas regalias? Como não podia deixar de ser tinham de pagar as respectivas quotizações. Pilim, amigo. sempre Pilim.
Compreendo que não tenha conhecimento destas tretas porque já passou tanto tempo que nem os elefantes se lembram delas, mas vou dar-lhe mais uma dica para quando abandonar funções não meter outra vez o pé na poça. Sabe certamente que o sistema de segurança social público é relativamente recente em Portugal. E não ignora que as bases da segurança social aprovadas pela Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro, ainda cheiram a naftalina e que o art. 51.º n.º 1 do mesmo diploma refere "são abrangidos obrigatoriamente pelo sistema previdencial, na qualidade de beneficiários, os trabalhadores por conta de outrem ou legalmente equiparados e os trabalhadores independentes". Não me diga que também não conhece o Código Contributivo. Sim, sim, aquela lei que diz clarinho quem deve e quem não deve chegar-se à frente. Dê uma vista de olhos no art. 132.º: "são obrigatoriamente abrangidos pelo regime dos trabalhadores independentes as pessoas singulares que exerçam actividade profissional sem sujeição a contrato de trabalho (...) e no art. 154.º n.º 1: "os trabalhadores independentes são responsáveis pelo pagamento da contribuição que lhes está acometida (...)". Então e aquela regra essencial do art. 6.º do Código Civil segundo a qual "a ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas".
Se não sabia nada disto tem de ter algum problema, por isso aconselho-o, quanto antes, a fazer uma tomografia axial computorizada ou uma ressonância magnética à carola. Não gosto de agoirar mas deve andar para aí a chocar um esquema manhoso no lóbulo frontal ou no parietal porque não é normal um homem varrer-se da memória assim. Pelo sim pelo não faça como eu que sou um grande despassarado. Cole um post it no frigorífico a dizer “tenho de fazer descontos”, outro no espelho da casa de banho a dizer “tenho de fazer descontos”, outro no pára-brisas do carro a dizer “tenho de fazer descontos”, outro no fundo do prato da sopa a dizer “tenho de fazer descontos”, outro no ecrã da televisão a dizer “tenho de fazer descontos”e outro na testa da cara-metade a dizer “tenho de fazer descontos”. 
Se com post it não formos lá o problema é mais grave do que eu pensava e temos de fazer uma abordagem mais radical. O princípio é simples: já que não é possível fazer-lhe lembrar aquilo que deve fazer vamos assegurar-nos que nunca mais se lembrará daquilo que não deve fazer. Fazemos assim: vossemecê promete comer menos queijo e nós vamos pensar no seu caso. Olhe, da maneira como as coisas estão nem precisamos de muito tempo para pensar. Já está. Nós vamos continuar a deixá-lo comer queixo. Aliás, como somos uns mãos largas, vamos deixá-lo empanturrar-se de queixo. Melhor. Nós vamos providenciar carregamentos regulares de bom queijo da Serra da Estrela, de Nisa e de Azeitão, de vaca, de cabra, de ovelha, de mistura e de toda a maneira e feitio para termos a certeza que nunca mais recupera a memória. Em compensação só tem de nos prometer uma coisa: pode esquecer-se de descontar para a segurança social, pode esquecer-se de pagar o IMI, pode esquecer-se de pagar o IRS, pode esquecer-se de pagar a água, a luz e o telefone, pode esquecer-se de tudo, desde que não se lembre de começar a gamar a torto e a direito porque isso nós já temos mais dificuldade em perdoar. Mas tem de prometer não gamar antes de começar a trombar no queijo da serra para depois não vir dizer que não se lembra de ter prometido nada. 
E se disser que não prometeu nada? É igual, nós já estamos habituados. Além de mãos largas somos uns corações de manteiga e, como tal,  mais cedo ou mais tarde vamos acabar por lhe perdoar. Isto se não se lambuzar, como é óbvio.
Boquitaslusas

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