sexta-feira, 20 de março de 2015




Boca n.º 12: A bronca da lista VIP


O assunto da semana é indiscutivelmente a famosa lista VIP criada pela administração fiscal. Quem é que pode concordar com uma coisa destas num país que se diz patriota? Miséria das caraças. Lista VIP! Onde é que já se viu.
Acho muito bem que o responsável tenha ido pregar para outra freguesia porque não se admite que um alto responsável da administração fiscal não conheça o texto do novo Código do Procedimento Administrativo que está por dias. Se não sabe que a língua oficial através da qual a Administração Pública se relaciona com os particulares é obrigatoriamente o português só tem mesmo de se pôr ao fresco. Se tivesse lido o art. 54.º do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, que aprova o referido código, saberia que de agora em diante todos os documentos administrativos têm de estar redigidos em português. 
Portanto, o pecado original não é o facto de ter criado uma lista mas sim o facto de ter criado uma lista usando um estrangeirismo num documento oficial da Administração Pública. Se esta habilidade tivesse sido feita no tempo da velha senhora no mínimo dava direito a uns mesinhos à sombra em Peniche ou, para quem não apreciasse especialmente, igual período ao sol do Tarrafal. É-lhe bem feito. Se não tivesse andado a dormir na forma não acontecia isto.
Agora permite-se tudo e mais qualquer coisa. Acham que em Espanha era possível a administração fiscal criar uma Very Important Person List? Jamais (pronuncia-se jámé  kkkkk), como dizia o ministro que ficou famoso com a tirada do aeroporto. Em Espanha chamam-se os bois pelos nomes, mas em castelhano, o que aplicado ao caso resultaria em qualquer coisa como “lista de contribuyentes muy importante”. Já viram. Era uma lista em espanhol que os portugueses percebiam melhor do que a lista portuguesa. Porque é que em Portugal teimam em fazer diferente? Se o fisco tivesse intitulado a lista de “lista do peixe-graúdo” soava pior mas provavelmente o assunto tinha morrido na casca.
Dizemos provavelmente porque há sempre a hipótese de alguém estrebuchar e este é o segundo pecado da lista. O responsável pela lista VIP devia saber que o mesmo documento não pode ter designações diferentes consoante a zona do país em que é utilizado: o IMI é IMI tanto no Minho como no Algarve. O IRS é IRS tanto no Alentejo como nas Beiras. O IUC é IUC tanto nas Berlengas como nos Açores. Mas a lista VIP não. Qual o motivo porque criou uma lista VIP a sul do Douro que se transforma numa lista BIP a norte do Douro? Foi incompetência pura. Bery Important Person não tem jeito nenhum porque a primeira palavra não tem tradução possível o que transforma a lista de pessoas muito importantes a sul do Douro somente em lista de pessoas importantes a norte do Douro e o Tribunal Constitucional nunca deixaria passar uma falha destas. Quer dizer: um contribuinte atravessa a ponte da Arrábida de sul para norte e perde o estatuto de muito importante para passar a ser apenas importante.
Não me repugna que quem paga e paga bem tenha algumas mordomias. Proponho qualquer coisa como um cartão de contribuinte gold, ou melhor, um cartão dourado para não correr o risco de ser ilegal, associado a alguns serviços que devem estar consagrados no estatuto de contribuinte VIP ou BIP, conforme quiserem, já  que «peixe-graúdo» fere mesmo os tímpanos.
Desde logo o possuidor do cartão dourado deve ter direito a ser atendido em primeiro lugar. Faz sentido e a Constituição não vai contra isso. Então o sortalhudo que ganhou 100 milhões no euro milhões à poucos dias e deixou logo 20 milhões nos cofres da tesouraria da fazenda pública não deve passar à frente? Deve sim senhor. Aliás, dos 80 milhões restantes ainda lá deixará seguramente mais de metade, portanto o homem, ou a mulher, quando quiserem ir às finanças para lá deixarem mais uns milhões não só devem passar à frente como deve ser-lhes fornecido transporte de ida e volta por conta do Estado. E não há violação nenhuma da Constituição porque todos os que lá forem deixar alguns milhões de uma vez só devem ter precisamente o mesmo tratamento.
O contribuinte VIP deve ter um atendimento personalizado. Deve ser atendido por um funcionário VIP que fale línguas, vista Armani e que o venha receber à entrada da repartição de finanças com um sorriso nos lábios. Não fica mal não senhor que o atendimento decorra num gabinete privado com iluminação regulável e musica clássica a meio-gás. E o Estado não morre mais pobre se colocar uns salgadinhos em cima da mesa e um portinho a 10 ou 11.º.
Em bom rigor a administração fiscal devia celebrar uma espécie de contrato de agência com os contribuintes da “lista de peixe-graúdo” e rentabilizar ao máximo as receitas fiscais. A coisa seria assim. As finanças têm na sua posse os dados pessoais de todas as celebridades portuguesas. Qualquer gigante do marketing digital dava uma pipa de massa para aceder aos dados desses tubarões, cachalotes, leões-marinhos e afins, só para ter a oportunidade de lhes inundar a caixa de correio com as últimas novidades: solários de última geração, lipoaspirações ao domicílio e viagens espaciais, só para referir alguns exemplos. Já viram os milhões de IVA que isso representa. A administração fiscal podia inclusive fazer mais umas coroas servindo de intermediário entre as empresas de eventos e os ditos VIP. Era assim uma espécie de facilitadora de contactos (perceberam?): os convites eram endereçados para as finanças que cobravam uma comissão e depois nomeavam os VIP por escala. Era só vantagens: os famosos estavam sempre na berra onde houvesse casórios, baptizados, primeiras comunhões, crismas e funerais sem necessidade de outros intermediários e praticamente não corriam o perigo de ficar a uivar porque se os clientes não pagassem as finanças penhoravam mesas, cadeiras, passadeiras vermelhas, copos, pratos e talheres, até nada sobrar. Mais uma vez as finanças ganhavam de duas formas: cobravam aos organizadores dos eventos por lhes fornecer as celebridades e recebia o IVA correspondente aos «honorários» cobrados pelas celebridades aos clientes.
Da forma como as coisas foram feitas não era de esperar outra coisa. Só podia correr mal. Porquê uma lista VIP se não está perfeitamente definido o que é um VIP? Um VIP é um tipo que ganha dinheiro a potes sem nunca por os pés na televisão ou é um fulano que está sempre atrás das câmaras e não tem onde cair morto assim tipo emplastro. Agora vão chover processos judiciais movidos por todos aqueles que não estão na lista mas acham que também lá deviam estar porque também são VIP quando na verdade não passam de uns passa fome. Porque é que meteram lá o Ronaldo?
Se tivessem chamado os bois pelo nome era “lista de peixe graúdo” e pronto. Admitiam-se os atuns, os espadartes e quando muito os peixes-espada, mas nunca os chocos, as sardas ou os verdinhos. As baleias e o cachalotes não entram na lista porque têm a massa nas ilhas Caimão e o fisco não põe la os gatafunhos. Assim deu bronca e vai continuar a dar. Não se esqueçam que a Constituição Portuguesa admite que haja uma lista VIP mas sob a condição de haver também uma lista não VIP, ou seja, uma NVIP, ou pensavam que podia haver uma lista VIP e uma lista sem designação para os outros todos. Isso é que era discriminação. Por outras palavras, tem de haver uma “lista do peixe -graúdo” e uma “lista da arraia-miúda” que integre os chocos, as sardas e os verdinhos excluídos da lista principal, mas também os joaquinzinhos, as petingas e todos os outros peixes que conseguem passar pelas redes de malha pequena. E quanto a estes as finanças têm igualmente o dever de criar um estatuto próprio além de rentabilizar a lista sob o ponto de vista financeiro. 
Quanto ao estatuto da arraia-miúda sugerimos o direito de estar caladinho na bicha do atendimento, o direito a ser atendido por um funcionário minimamente bem-disposto e o direito a ser reembolsado das quantias pagas indevidamente antes da morte do contribuinte.
Quanto à forma de rentabilizar esta lista, o fisco que experimente fornecer os dados às inúmeras empresas de crédito rápido e verá o que elas estão dispostas a pagar pelo serviço. Tinha uma vantagem adicional: como os desgraçados que caem nesta agiotagem geralmente nunca mais se vêm livre dela, lá podiam as finanças acumular mais este pelouro e ganhar uns patacos adicionais em penhoras. Desta seria seriam as calças, as camisas, a roupa interior, os relógios, as próteses dentárias, as perucas, as lentes de contacto, as unhas de gel, tudo, tudo até um indivíduo ficar tal como veio a este mundo.
                                                                                      
Bocaslusas

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