Boca 17: Atropelar um, dois ou três peões. Qual a diferença?
Infelizmente esta semana ocorreu mais um acidente
envolvendo peregrinos que se deslocavam para Fátima com a agravante de, desta
vez, terem falecido cinco pessoas. Já ninguém consegue devolver a vida a estas
pessoas, é um facto, mas, no mínimo, devia aproveitar-se a oportunidade para
reflectir sobre o assunto.
Um acidente é isso mesmo: um acidente, ou seja, um
acontecimento imprevisto e indesejado pelos seus intervenientes. Para a
ocorrência do acidente, seja ele de que tipo for, concorrem sempre diversos factores,
no caso de um acidente de viação: a configuração da via, as condições
atmosféricas, o estado de espírito dos intervenientes, o estado mecânico dos veículos,
etc. Portanto, quem tiver a veleidade de se propor acabar com este tipo de ocorrências
terá de ter a arte e o engenho de agir sobre todos os factores que acabamos de
enunciar de forma a extinguir a possibilidade de qualquer deles criar condições
para a ocorrência do acidente. Como isto é simplesmente impossível não vamos
perder mais tempo com esta questão. Os acidentes não deixarão de ocorrer quer
queiramos quer não, simplesmente porque não conseguimos agir sobre todas as variáveis
do acidente.
Acidentes sempre os haverá, mas há acidentes
e acidentes. Não se pode comparar um acidente de viação devido a uma falha mecânica
ou condições atmosféricas adversas com um acidente de viação devido a
circunstâncias que não queremos sequer chamar à colação por demais conhecidas.
Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, mas infelizmente tudo parece
estar metido no mesmo saco. Um acidente de viação é um acidente e como tal o
respectivo condutor não é bem um criminoso logo tem de ter um tratamento soft porque afinal o azar pode bater à
porta de qualquer um.
Será que o cidadão comum faz ideia de que os
acidentes de viação de que resultem mortos são em regra subsumíveis ao crime de
“homicídio por negligência” que é punido com pena de prisão até cinco anos? Será
que o cidadão comum tem presente que, em regra, a condenação em pena de prisão até
cinco anos é suspensa na sua execução? Será que o cidadão comum sabe que, tendo
em consideração que a moldura penal não ultrapassa os cinco anos, o suspeito da
prática do crime de homicídio por negligência não pode ficar preso
preventivamente. Será que o cidadão comum tem a noção de que o suspeito da
prática deste tipo de crime só em situações devidamente fundamentadas fica
detido após o acidente até que seja presente a tribunal?
Duvidamos que saiba e, na verdade, também não é exigível
que saiba porque não são contas do seu rosário. Por que tem mais com se
preocupar o cidadão comum ignora que o suspeito da prática deste tipo de crime na
maior parte das vezes comparece no tribunal mediante notificação dos órgãos de polícia
criminal, ou seja, vai porque quer, nada o impedindo de após o acidente se por
ao fresco para a cochinchina, quiçá para um país que não tem acordos de
extradição com Portugal. O cidadão comum desconhece que embora o suspeito seja obrigatoriamente
sujeito a termo de identidade e residência quando comparece em tribunal eventualmente acumulável com outra medida de coacção, só não se põe igualmente a milhas antes
do julgamento se não quiser.
Pois é. Um indivíduo põe-se ao volante, vai por essa
estrada fora e derruba um, dois ou três e o que é que acontece? Acontecem duas
coisas: os desgraçados vão para debaixo da terra e o condutor fica por cá a
assobiar para o lado, tanto faz que derrube três, quatro ou cinco como
cinquenta. Mesmo que tenha o azar de ficar efectivamente preso, ainda sai muito
a tempo de voltar a ter outro «acidente» e derrubar mais uns quantos e assim
sucessivamente enquanto houver peões para atropelar. O mal disto tudo é que a
fé parece ser exclusiva dos mais pobres porque os mais abastados, pelos vistos,
não têm azares na vida. Esta gente vende saúde e transborda de dinheiro pelo que
não tem necessidade de andar apeada por essas estradas fora e assim sendo não
se sente impelida a mudar este estado de coisas.
Quando estas coisas acontecem aos outros sentimos arrepios mas a vida
continua. Quando a tragédia nos bate à porta tudo muda de feição. Nesta
altura percebemos que algo está mal, que algo cheira a podre, que
algo tem de mudar. A questão nuclear é esta. No nosso país, bem ou mal, é
necessário preencher uma série de requisitos para obter uma licença de uso e
porte de arma de defesa a ponto de, neste momento, muita gente já ter desistido
de o fazer, ainda que objectivamente tenha necessidade de deter uma arma de
fogo para auto protecção. Para tirar uma carta de condução é necessário ter
dezoito anos de idade e ter disponibilidade para pagar algumas centenas de euros
à escola de condução. Pouco mais.
Todavia, se alguém matar outrem com recurso a uma
arma de fogo sujeita-se a uma pena de prisão que, consoante as circunstâncias,
pode ir até 25 anos, mas se a mesma pessoa decidir cometer um homicídio mediante
atropelamento, a não ser que se consiga provar que o fez com dolo, é punido no
máximo com cinco anos de prisão e só muito excepcionalmente prisão efectiva.
Este quadro não é minimamente dissuasor. Enquanto
assim for, podem crer, continuaremos a ouvir falar de acidentes e mais acidentes
em condições que nos fazem coçar atrás da orelha. O nosso ordenamento não
incute no condutor a responsabilidade que ele efectivamente tem quando conduz
um veículo automóvel, ou seja, não lhe transmite a sensação de que nas suas
mãos tem uma arma mortífera e como tal espera que ele tenha um comportamento em
conformidade sob pena de ser fortemente penalizado. Cúmulo dos cúmulos, em
determinadas circunstâncias o nosso ordenamento jurídico pode punir mais
fortemente o furto da viatura do que a morte do dono que se atravessou na
estrada na tentativa de reaver.
É assim, infelizmente, e o condutor português sabe
disso. É por ter a percepção de que a lei pouco se importa com aquilo que ele
faz no exercício da condução que continua a conduzir da forma como o faz. Nós,
portugueses, que frequentemente invocamos o que se passa nos outros países para
justificar, bem ou mal, o que se passa no nosso, devíamos dar uma vista de
olhos pela forma com a lei e as autoridades tratam esta questão na generalidade
dos países anglo-saxónicos. Nesses países, tipo Estados Unidos ou Austrália, o
exercício da condução é uma coisa séria. Um condutor que seja detectado em
violação grosseira das regras de trânsito dificilmente prossegue a condução. O
mais certo é ficar apeado e de seguida ser presente a um juiz que lhe põe o
dedo no nariz: voltas cá e vais para a cadeia, isto se não fores já.
Nós por cá somos mais brandos: um condutor pode
cometer uma infracção, duas, três ou quatro, que, quando muito, leva outras
tantas coimas e segue viagem. Para ser detido e ser presente a tribunal por
condução perigosa é quase necessário que aconteça aquilo que se pretende
evitar, ou seja, o próprio acidente.
Experimentem deixar-se de princípios e
mais princípios e prevejam a possibilidade legal de perante violações
grosseiras das regras de trânsito os respectivos condutores ficarem com a carta
imediatamente apreendida. Criminalizem o crime de homicídio por negligência
como deve ser, autonomizando-o quando cometido através de veículos automóveis e
com uma moldura penal pesadinha. Os condutores não pensavam nisto antes
de elevarem os copos ao alto? Os condutores não pensavam nisto sempre que pegassem
no volante dos seus automóveis? Os condutores não pensavam nisto antes de meterem
prego a fundo, ultrapassando pela esquerda e pela direita?
Pensavam sim senhor e se não pensassem lá estavam as
autoridades para os lembrar no momento. E para os que tivessem maior dificuldade em
lembrar-se havia certamente um lugar onde teriam todo o tempo para o fazer: a
cadeia.
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