sexta-feira, 22 de maio de 2015



Boca n.º 19: Policias, bastões e engravatados


O tema da semana foi indiscutivelmente a intervenção da polícia após o final do Jogo entre o Benfica e o Vitória de Guimarães muito pela contundência das imagens captadas pelas câmaras da televisão. De facto, a avaliar somente por aquilo que nos foi dado a ver – não a ouvir – custa a aceitar que um agente da autoridade, especialmente um graduado investido em funções de comando, tenha tido uma intervenção tão enérgica e desproporcionada em face da ameaça que aparentemente se lhe apresentava.
 Aproveitamos para deixar bem vincado que todo o excesso deve ser punido de forma exemplar mas não em cima do joelho sob pressão da opinião pública. Não nos parece que um polícia, só pelo facto de o ser, deva ser pré-condenado sem direito a contradita como se a verdade da outra parte sustentada na força das imagens fosse uma verdade absoluta. A verdade, seja ela qual for, emergirá naturalmente de todo este emaranhado de contra-informação como o azeite se eleva na água por mais turva que esta se apresente. Não adianta, pois, mexer e remexer a água na ânsia de diluir a gordura que ela acabará por se revelar. Dito isto, nem mais um segundo perdemos com este caso em concreto.
Todavia, em abstracto o assunto interessa-nos sobremaneira. Compreendemos todo este burburinho porque a notícia é o homem morder no cão e não o contrário. Alguém quer saber se um caniche, um rafeiro ou um são bernardo mordeu numa pessoa? Claro que não: se o cão se sente ameaçado - morde. Nada mais normal. Mas se alguém morder num cão o caso muda de figura porque supostamente o homem não tem reacções de primata: o símio morde nos outros animais mas o homem não. Posto isto, perguntamos. Alguém se preocupa em saber por que motivo estas coisas acontecem contra a ordem natural das coisas? As televisões não têm interesse em investigar por que motivo algumas pessoas passaram a usar as mandíbulas para tudo menos para aquilo para que elas deviam servir? Deviam, mas não o fazem para muita pena nossa.
Se os órgãos de comunicação social, especialmente as televisões, tivessem a mínima motivação para se inteirar das razões descobririam coisas interessantíssimas. Descobririam, por exemplo, que parte substancial dos polícias não tem o mínimo prazer em ir policiar jogos de futebol, do glorioso ou do cascalheira, porque tanto num caso como no outro são obrigados a passar cerca de três horas a pé firme, sem pestanejar e a ouvir de tudo e mais qualquer coisa pela porcaria de pouco mais de vinte euros a receber dai a uns bons meses – alturas houve em que eram anos – depois de feitos os respectivos descontos. É verdade, depois de uma semana de serviço em turnos rotativos, de dia e de noite, com umas quantas horas mal dormidas pelo meio, são obrigados a fazer os serviços ditos “gratificados” a troco de tuta-e-meia sem possibilidades de recusa.
O cidadão comum já se interrogou se é legitimo obrigar alguém a abdicar do seu escasso tempo livre em prol da realização de um evento cujo interesse público é questionável. Se a realização de um jogo de futebol tem interesse público – nalguns casos admitimos que sim – a polícia devia ser mobilizada para esse evento no horário normal de serviço e sem pagamento da dita gratificação de miséria, como é óbvio, mas em compensação respeitava-se o direito ao descanso que lhe é devido após uma semana de trabalho. É assim em todo o mundo dito civilizado.
A opinião pública deste país devia saber que há muitos polícias, quem diz polícias diz guardas, a trabalhar entre a meia-noite e as seis ou oito da manhã a que se segue o policiamento de um jogo de futebol às três da tarde com obrigação de estar no local uma hora antes. Façam contas. São apenas seis ou oito horas de diferença entre serviços, incluindo o tempo da refeição pelo meio. Alguma televisão se deu ao trabalho de indagar se era verdade que, nalguns casos, entre as oito da manhã e as duas da tarde o moiro ainda tem de fazer mais um extra forçado pelas dez da manhã nos campeonatos das camadas jovens. Pois é, não sabem mas quando a coisa dá para o torto já estão em cima do acontecimento. Não interessa se o mainato está mais morto do que vivo, não interessa se tem os nervos à flor da pele de tanto cansaço e não interessa se no final do jogo vai fazer outra noite sem ter recuperado da anterior. Interessa é haver sangue e quanto mais melhor.
A verdade é só uma mas tem duas faces como as moedas, Uma delas é exposta sempre que o polícia mete o pé na poça mas a outra contínua oculta como se não existisse porque não interessa. O chamado jornalismo de investigação – o tal das câmaras ocultas que de tempos a tempos entra pelos hospitais – devia também acompanhar dissimuladamente os polícias nas suas actividades para demonstrar os cidadãos exemplares que povoam este país à beira-mar plantado. Seria extremamente interessante ver como certos indivíduos se dirigem ao agente da autoridade como se ele fosse um burro em forma de gente num país em que qualquer indivíduo que use gravata exige mordomias de sr. Dr. ou de V. Ex.ª. Os portugueses não sabem – mas deviam saber – que não é raro os polícias levarem um detido a tribunal para julgamento às nove da manhã após uma noite de serviço e às duas da tarde ainda estarem na sala de espera a aguardar por uma satisfação. Grande consideração por um profissional que estafou o coiro durante toda a noite e na hora de ir para a cama ainda teve a coragem de não virar costas à prática de um crime.
É por estas e por outras que vai-não-vai apontam a pistola à têmpora e acabam-se as desfeitas. As televisões deviam indagar quantos policias se suicidaram nos últimos anos em resultado deste estado de coisas. Deviam investigar o têm feito as chefias para combater este flagelo. Deviam questionar se a inspecção-geral do ministério da administração interna faz a mínima ideia do que se passa. Deviam saber se o ministro da tutela tem opinião formada sobre o assunto. Deviam, mas não fazem por que isso não dá share (porcaria de palavra).
O polícia deve ter – e tem – a preparação adequada para enfrentar certas contingências, não podendo reagir por impulso. Todavia o polícia é um homem não é um autómato e como tal não está isento de em condições extremas se desviar do padrão de conduta que era espectável da sua pessoa. Será justo condenar alguém sem fazer a mínima ideia das razões subjacentes a uma determinada tomada de posição? Não parece. Portanto, quando assim é mais vale deixar os juízos de valor para as instâncias adequadas porque é nesses fóruns que as verdades vêm ao de cima. Isto não significa, como é óbvio, que não tenhamos a nossa opinião sobre as coisas mas não podemos ignorar que a nossa verdade vista à distância é sempre, e tão só, uma meia-verdade. Ora com meias-verdades não se faz boa justiça sobretudo quando alguém pode ser punido disciplinar e criminalmente.
Quando alguém pode ser punido a dobrar, como é o caso, o mínimo que se exige é que haja igualmente o dobro da diligência no processo punitivo. E se for culpado – puna-se.
Bocaslusas



  


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