Boca n.º 9: O enriquecimento ilícito
Muito por força das notícias vindas a lume nos
últimos dias acerca da existência de algumas centenas de contas milionárias de
cidadãos portugueses em bancos suíços, a semana ora finda ficou marcada pela
repristinação de algumas iniciativas legislativas tendentes a criminalizar o
enriquecimento ilícito.
Para o Zé Povinho os sortalhudos titulares destas contas
são, no mínimo, uns grandessíssimos ladrões e para a gentalha deste calibre só
há um remédio à boa maneira iraniana: mãozinha em cima do cepo e zás. Doravante
se quiserem coçar o traseiro vão ter de o roçar na parede como fazem os
cachorros infestados com lombrigas.
Para a classe política a questão é mais complexa uma
vez que mexer nestas matérias implica por vezes cuspir no prato de quem já lhes
matou a fome. Por isso, em regra, preferem resolver o problema com regimes
extraordinários para regularização de dívidas fiscais e compreendem-se as
razões: hoje precisam uns amanhã precisam outros e uma mão lava a outra.
Quando o povo uiva mais alto ou as eleições se
aproximam, os tais projectos bolorentos voltam a ver a luz do dia de forma
estridente e lá volta mais uma vez a treta da inversão do ónus da prova à
baila. Como para grandes males grandes remédios, nada melhor do que dizer ao
suposto ladrão que, se não quiser ser chamado de ladrão e ser tratado como tal,
trate de demonstrar que não é ladrão. “Quem não deve não teme”, soa bem e o
povo aplaude.
Infelizmente o problema não é tão linear. Depois de
alguém ser rotulado de ladrão na praça pública não basta provar que afinal não é
ladrão para deixar de o ser aos olhos do povo. É que - e isto só alguém que
tenha sofrido este tormento na primeira pessoa pode dizer - quando o Zé Povinho
se convence de que alguém é mesmo ladrão é difícil convence-lo do contrário, ainda
que a pessoa seja cumpridora, quiçá a pessoa mais cumpridora que se conhece
para não dizer a pessoa mais cumpridora do mundo. Na consciência do Zé, do Joaquim
e da Alzira onde há fumo há fogo e se não roubou nesta roubou noutras.
Durante o período da inquisição nenhum herege era
morto na fogueira sem antes lhe ter sido dada a oportunidade de ser submetido a
um julgamento «justo». O inquisidor acusava o cidadão de heresia e o pretenso
herege só tinha de provar o contrário – coisa pouca. Como é que o inquisidor obtinha
a prova da heresia? Era fácil: Era herege quem efectivamente era herege, era
herege quem parecia ser herege, era herege quem poderia vir a ser herege, era
herege quem alguma vez tinha pensado em ser herege, etc. O herege competia
infirmar o teor do auto de fé provando inequivocamente a sua fé preferencialmente
através de um millagre durante a sessão de
julgamento no tribunal eclesiástico. Assim não só provava que era um bom cristão como inclusive provava que era santo. Se não conseguisse um milagre teria de se
esforçar bastante para provar que era temente a Deus pois caso contrário ia
inevitavelmente parar à fogueira. A mesma fogueira que agora se pretende
reintroduzir.
Suponhamos então que alguém tem um soma avultada ou
património expressivo incompatível com as suas aparentes fontes de rendimento. Em
linguagem para toda a gente entender o Ministério Público diz:
- O Sr. tem depositado x milhares de euros no banco y
e, que se saiba, não faz a ponta de um corno na sua vida. Como o Sr. anda
sempre de costas ao alto não é possível ter tanto dinheiro de forma lícita e,
assim sendo, é um criminoso a não ser que me prove o contrário, ou;
- O Sr. tem um apartamento dúplex nas Amoreiras, um
Ferrari entre outros veículos de luxo estacionados na garagem e um iate na
marina de cascais, mas pelas nossas contas o senhor só devia ter um T1 no
Cacém, um Renault cinco em terceira mão e uma canoa insuflável. Assim sendo, pensamos
que cometeu um crime porque todos os outros nas suas circunstâncias à muito que
estão a viver do rendimento social de reinserção. Portanto, recai sobre o
senhor o ónus de nos convencer que estamos errados.
Perante isto o cidadão encolhe os ombros e oscila
entre duas alternativas com o mesmo resultado: se falar enterra-se e se não falar
enterra-se ainda mais.
Até o Chico da Tasca percebe à primeira que o
silêncio nestas circunstâncias funciona como admissão de culpa, ou seja, se o
desgraçado tiver a felicidade de ter uma massas mas tiver o azar de ser mudo
está pura e simplesmente f……ido, a não ser que, como no tempo da inquisição,
aconteça o milagre de a língua se desenrolar em plena sala de audiência. Em
suma, o ladrãozeco de furtos menores pode calar-se e continuar a ladroar mas o
ladrãozorro de colarinho branco na óptica do Ministério Público tem de desbobinar
tudo se não quiser ficar a queimar em lume brando até à fogueira final.
Até o Chico da Tasca compreende também que num
sistema deste tipo o Ministério Público é o dono da razão e nunca tem dúvidas
(onde é que já ouvi isto), ou seja, não precisa de fazer patavina para encostar
o suposto criminoso à parede. Não precisa de fazer exames, buscas, revistas e
apreensões, não precisa de inquirir testemunhas, não precisa de fazer
praticamente nada. Basta-lhe tão e somente acordar calmamente pela manhã, tomar
o pequeno-almoço, chegar ao tribunal, ligar o computador, observar um extracto bancário,
clicar, ir à impressora, trazer o documento, chegar junto do pseudo-ladrãozorro
preso na véspera e sem direito a banho, apontar o dedo e dizer em voz áspera: tu
enriqueceste à pala. Prova-me que é mentira.
À primeira vista o povo não vê perigos nisto desde
que esteja em causa um político dos tais, mas talvez deixe de pensar assim
quando verificar que, afinal, sob o mesmo princípio vão começar a ser presos,
de véspera e antevéspera, cidadãos pouco mais que remediados, e, quem sabe,
qualquer um de nós. E porquê? É simples. Se a medida é tão eficaz como se
propala vai acabar com o regabofe num instante porque em Portugal não existem fortunas
colossais a pontapé. Como é evidente, a partir do momento em que já
não houver sardinha ou carapau do maior, começar-se-a a pescar petingas e joaquinzinhos
por que tão ilícito é o enriquecimento de quem já ganha muito mas apresenta
muito mais do que aquilo que ganha como é ilícito o enriquecimento de quem não
ganha rigorosamente nada mas apresenta qualquer coisita. Em tempos de míngua
como os que correm este pensamento é muito perigoso uma vez que tudo o que
seja algo mais do que a mera indigência pode ser visto como enriquecimento
ilícito.
Verificamos então que o silêncio forçado do mudo
leva-o à prisão preventiva onde permanece a expiar até que se lembre de onde
caiu cada cêntimo, cada talher de prata ou cada gadget de última geração
detectado na sua posse. Coisa bonita. Então um indivíduo tem de provar de onde
veio o que amealhou e o local mais indicado para o fazer é num calabouço
húmido, escuro e sem qualquer forma de comunicação com o exterior ou estão a
pensar conceder o direito de o preso aceder a telefone, Internet, fax,
impressoras etc., para justificar o seu pecúlio. Claro que não. O arguido se
quiser que puxe pela memória que tempo não lhe vai faltar.
- Então o senhor já se lembrou de onde veio o
castiçal de prata que está na sala de jantar? E o quadro do Bordalo Pinheiro
que está no Hall? Já agora não se recorda de onde vieram as garrafinhas do “Bacalhoa”
que tem na cave?
É precisamente isto que vai acontecer a não ser que seja
permitida a permanência do criminoso em liberdade até se lembrar de onde
choveram as coisas. Se assim for, parece-me que os locais mais indicados para
revigorar a memória são, entre outros, os brancos areais de Acapulco ou da Riviera
Maya, mas não estou a ver o ladrãozorro regressar a Portugal em classe
executiva para dizer:
- Hum…. Já sei de onde vieram os castiçais, mas as
garrafitas do Bacalhoa não. Após o que regressa às águas cálidas das Caraíbas
na esperança de alvitrar de onde diabo caíram as garrafitas do excelente
tintol.
Dito isto, o mais certo é que o exercício de
meditação seja feito no xadrez que é o melhor sítio para por as ideias em
ordem, isto enquanto o Ministério Público bebe uns cafés para espantar o tédio.
Sim porque o inquérito passará a ser uma pasmaceira já que nenhuma investigação
há a fazer, ou melhor, se alguma investigação há a fazer é por parte do arguido
para se inocentar. O silêncio sepulcral reinante no submundo apenas vai ser
interrompido por breves instantes a cada três meses na altura em que o
carcereiro desce às catacumbas e sorumbaticamente pergunta ao mudo:
- Já te lembras de alguma coisa? Não? Então volto
daqui a três meses e pode ser que já digas alguma coisa, após o que bate o
ferrolho com um lacónico Tchau.
Pois bem, alguma vez se pensou que há situações em
que a pessoa infelizmente prefere começar a assar em lume brando durante meses
ou anos em prisão preventiva e depois acabar na fogueira em vez de dar com a
língua nos dentes. E nem sequer têm de estar em jogo fortunas astronómicas
senão vejamos. Não é comum uma senhora relativamente jovem, sem especiais
qualificações académicas e sem qualquer actividade profissional conhecida
construir um património com alguma dimensão. O inquisidor mor lança-lhe a
farpa:
- A Sr.ª tem depositado duzentos mil euros no banco
X, só veste de Givenchy para cima e passa a vida a coçar a micose.
Pois bem, a afirmação encerra duas verdades e uma
meia-verdade: a sr.ª de facto é titular de uma conta choruda, a sr.ª veste bem,
mas a srª não coça a micose no sentido que o inquisidor lhe quis dar, pelo
contrário.
A verdade é que a senhora em face dos seus excelentes
atributos físicos optou por rentabilizá-los da forma que melhor entendeu,
enveredando por uma profissão imoral mas excelentemente remunerada (não tenho nada
contra). Pergunta-se. Então esta senhora é obrigada a por a nu toda a sua
privada para justificar de onde lhe vieram os euros que ganhou? Tratando-se de
uma profissional conceituada e bem frequentada até seria interessante saber
quem foram os seus clientes ao longo dos anos, mas esta curiosidade não nos
pode desviar do essencial. Nunca foi, não é nem deve ser ela a justificar de
onde lhe veio o dinheiro mas sim quem a acusa. Aliás, ninguém tem nada que
saber se o dinheiro lhe veio de 10, 100, 1000 clientes ou de apenas um porque
perante tamanhos atributos não se pode excluir a hipótese de alguém com muitas
posses se deixar enredar pelos seus encantos e a premiar principescamente. Quem
dá é livre de dar e quem recebe é livre de receber. Quem achar que isto é crime
só tem de o provar se for competente o suficiente. Mas parece-nos que não.
A inversão do ónus da prova não é mais do que o
reconhecimento de uma polícia gorda, com varizes e sem capacidade de correr
atrás dos criminosos. No fundo não é mais do que a generalização da imagem do
sargento obeso da GNR alargada a outros corpos especialmente encarregados de
perseguir este tipo de criminalidade. Recomendamos dieta e jogging a essa gente e, por
favor, senhores políticos deixem lá ficar o ónus da prova onde sempre esteve.